Nietzsche, morto em 1900, nunca sentiu nenhuma simpatia pela democracia. Ao contrário, considerava-a um regime cuja presença em qualquer país já prenunciava uma irreparável decadência. Como sintoma disso, da decomposição dos valores superiores que fizeram a glória da cultura ocidental, ele apontou o verdadeiro culto, que na moderna sociedade - envenenada pelo cristianismo e pelo liberalismo dos medíocres - presta aos fracos, aos fracassados e aos insanos. A compaixão para com o que é débil e enfermo pareceu-lhe o sinal mais agudo da decomposição de uma cultura que outrora fora superior.
Foi Elizabeth Föster-Nietzsche, a irmã do pensador, tutora do espólio dele conservado no Nietzsche-Archiv em Weimar, quem organizou e deu a forma final, em 1901, um ano depois da morte do pensador, ao volume do Der Wille zur Macht, a Vontade de Poder. Nada mais era do que uma enorme coleção de aforismos, bem mais de 600, alguns alcançando a medida de uma página, que ele tentou distribuir em quatro livros, com um conjunto de escritos um tanto desconexos que ele decidira juntar num livro só. Porém o definitivo acesso de demência que o acometeu em Turim, em 1889, impediu-o disso. O livro pode perfeitamente ser considerado como o testamento político e filosófico de Nietzsche (se bem que a seleção que ela fez foi muito criticada pelos especialistas e pelos críticos e outros admiradores de Nietzsche) e igualmente a suma derradeira de tudo o que ele escrevera até então. É de alguns dos seus aforismos, especialmente o de número 389, e de alguns mais, que extraiu-se o que se segue e que ele chamou de "a corrente descendente".
Nietzsche, como ideólogo contra-revolucionário, responsabilizava o clima geral de decadência, que ele sentiu generalizar-se na sua época, aos eventos da revolução francesa de 1789. Momento em que, segundo ele, a equivocada idéia de igualdade estabeleceu direitos comuns a todos, deixando-se a Europa levar pela "superstição da igualdade entre os homens".
A coisa piora ainda mais, segundo ele, porque a mescla social, amplamente praticada na idade moderna, estimulada pela "superstição da igualdade entre os homens", promove a liberação dos instintos vis das camadas sociais inferiores. Contamina-se assim o ambiente com os vapores do ressentimento, do descontentamento, do impulso destruidor, anárquico e niilista. Forma-se então um tipo de "vontade geral" que, partindo das massas, se joga, se dirige contra a escolha, contra os direitos de qualquer casta, fazendo por submeter mesmo os privilegiados envergonhando-os por deterem em outros tempos suas justificadas prerrogativas especiais. O homem especial, o excepcional, o fora de série, não só vê-se perseguido como também é forçado a introjetar algum tipo de culpa, condenando a si mesmo por não ser medíocre, por não ter uma alma de rebanho.
As coisas da política, evidentemente, não podiam ficar de fora desse enorme deslocamento gravitacional em direção às massas. E não são somente os demagogos que proliferam e se rivalizam na adulação escandalosa da populaça. Também os gênios das artes, como Victor Hugo e Richard Wagner, "tornam-se arautos dos sentimentos que servem para entusiasmar as massas", manifestando por elas um tom de compaixão, de reverência em face de tudo o que sofre, tudo o que tem vegetado, sido desprezado e perseguido. Em tais circunstância, aos homens de valor em geral não lhes resta outro caminho do que deixar-se levar por essa lodosa correnteza de mediocridade e plebeísmo. Afinal, é por ali, no caudaloso fluir da sociedade burguesa, que hoje corre o ouro e o dinheiro, fazendo com que essa aproximação do talento artístico com a plebe, "a mediocridade ganhe espírito, mordacidade e gênio". O político e o artista excepcional terminam, por conseguinte, sugados pela voragem da mediocridade. Nietzsche viu na emergência do nacionalismo um tipo de reaparecimento do tribalismo antiaristocrático que levaria fatalmente a Europa a "um estado absurdo", no qual não era possível continuar por muito tempo. "Há alguma idéia", perguntou ele então, "atrás dessa besta de chifres do nacionalismo?"
Nietzsche encontra ainda uma outra razão nesta preponderância pelo fraco e pelo deserdado. Ocorre, diz ele, que as raças fortes se dizimam mutuamente. As guerras, os desejos de poder, a aventura, as paixões fortes, arrebatadoras, tudo contribui para que elas acabem por se engalfinhar, exterminando-se. O tempo da existência delas é custoso e breve. A valentia doida de um Aquiles tem vida curta. O desaparecimento delas é sucedido por um período de profundo abatimento e corrupção generalizada. Elas, porém, também são pródigas, saindo delas um tipo superior, mais forte - o super-homem, que nada mais é senão que "uma secreção do excedente de luxo da humanidade". As raças fortes, se por um lado impõem medo e respeito, não inspiram confiança, pois sempre estão prontas a pôr tudo a perder ao atenderem as exigências e aos impulsos da coragem. Desta forma, só resta a elas desaparecer ou impor-se. Uma raça dominadora, assegurou ele, "somente pode ter origens terríveis e violentas."
Prof. Marlon Adami
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